28.11.15

-- Ó vezinha, mas tamem num'stá certo o qu'ele fez, matar assim a desgraçada.
-- Pois bem decerto que não, mas a culpa tamem foi dela, vezinha, e num me diga que não. Atão uma mulher casada num sabe que tem que se cumportar?! Atão fica assim de converseta c'u ôtro (e parece que já nem era a primeira vez), àquela hora da noite, num sítio p'queno, onde tudo se sabe, atão ela num sabia que podia ter problemas?! Mas que conversa? Parecia qu'estavà pedi-las...
-- Certo, vezinha, mas o homem tamem é munto violento, ai, é, é. Sempre foi. Mesmo c'u cachopo, dá-lhe cada chapadão às vezes... Eu, cu'as crianças, custa-me muito... olhe que custa...
-- Ó, mas aquilo tamem é um garoto endiabrado, é que só lhe dá pra fazer mal. Olhe que munta paciência tem às vezes o João. O fedelho é mau cum'ás cobras, saiu todo ó avô, o ti Franscisco, que Deus tenha em descanso, e a mãe tamem num lhe deve ter dado muita educação, só sabia era andar c'u ele debaixo da saia...
-- Mas agora as crianças são todas assim, vezinha, mais mexidas, são diferentes d'antigamente. Os nossos netos são iguais...
-- Ai isso é que num são!! É que nem se compara, Jesus, benza-nos Deus! Num são, não senhora! Têm educação. E ai dos meus netos, se num a tivessem. Nem eu admitia!
-- 'stá bem, mas olhe lá,  num se lembra daquela vez, ainda o garoto nem andava na escola, tinha prá aí uns quatro ó cinco anos, e ele lhe deu um puntapé nas costas cum tanta força, c'u garoto teve internado quase um mês? Atão aquilo são jeitos, senhor? Eu cá acho que não. É que nem tanto ao mar, nem tanto à terra, vezinha...
-- Óvi dezer que o apanhou a roubar cerejas naquilo do Cândido, aquilo se calhar nem mediu a força... acuntece, num é bem, num é, mas acontece, vezinha. Nunca lh'aconteceu? A mim já, a gente às vezes num mede a força, 'stá tão revoltada cum eles, que num mede a força.
-- Pois... olhe, num sei.  A mim nunca m'aconteceu, mas cada um sabe de si e Deus sabe de todos, mas a mim dá-me munta pena, munta pena, uma rapariguinha morrer assim tão nova. E deixar um filho tão pequenino por criar... Uma tristeza...
-- Atão e ele? Ele tamem estragou a vida toda, vezinha. Inda é capaz d'apanhar dois ó três anos. Fica cu'a vidinha toda estragada. Quem é que lhe dá trabalho depois?...
-- Pois... Que tristeza...
-- É a vida. Vou-me, que se faz tarde e inda tenho de fazer a janta.
-- Vá cum Deus. Tamem abalo. Té'amanhã.
-- Té'amanhã.

...



[Um obrigada especial à Maria, que me "lembrou" desta pobre salinha de costura abandonada.]

2 comentários:

  1. Ena!!! Voltaste e, ainda por cima, estou no teu post! :D

    A violência tem, tantas vezes, a absurda compreensão de quem sabe dela... Inclusivamente das vítimas!
    É urgente educar!

    Beijos, Costureira. Bom ler-te! :)

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    1. Graças a ti, Maria, que tens sempre uma palavra amiga. Obrigada.

      Quanto ao texto, toca umas das coisas que mais me magoa, mulheres apedrejando outras mulheres e (não só aceitando, como) perpetuando o machismo. E ao contrário do que afirma (e talvez a "brincadeira" de tentar caricaturar as vozes), esta violência primária não existe apenas nas aldeias ou nas vilas pequenas. Os grandes burgos estão cheios dela, talvez mais disfarçada.

      Um beijo, querida Maria. Também é muito bom ler-te.

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